Ignorar saúde sexual não protege jovem, diz criadora de caderneta vetada por Bolsonaro
Alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro, a caderneta de saúde do adolescente passou por dois anos de discussões com especialistas, pais e adolescentes e testes-piloto em cinco cidades antes de ser distribuída para o país.
Nos anos seguintes à sua implementação, a medida levou também a um aumento no número de adolescentes cadastrados para acompanhamento nas unidades de saúde — o grupo é conhecido pela resistência em procurar esses serviços.
A informação é da ex-coordenadora de saúde do adolescente do Ministério da Saúde, Thereza de Lamare, que atuou na área entre 2004 e 2015 e foi responsável pela implementação do projeto, criado em conjunto com outros pesquisadores.
“Tivemos respostas imediatas dos municípios que implementaram a caderneta por meio do programa Saúde na Escola, mostrando que isso contribuiu para esclarecer os pais sobre a importância de conversar sobre diversos assuntos”, relata.
Em entrevista à Folha, Lamare classifica como equívoco a possibilidade de recolhimento do material e de retirada de imagens que citam o uso da camisinha.
O anúncio foi feito por Bolsonaro por meio de vídeo divulgado na quinta-feira (7) por meio das redes sociais. Para ele, o material contém figuras que “não caem bem para meninos e meninas terem acesso”.
“Tem muitas informações boas aqui, precisas. Mas o final dela fica complicado no meu entendimento”, afirmou apontando para páginas com orientações de como utilizar a camisinha e imagem que explica as partes do órgão sexual feminino.
Em seguida, ele afirma que conversou com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para que o material seja recolhido e substituído por outra caderneta, “com menos páginas, mais barata e sem essas figuras.”
“É um equívoco”, diz a ex-coordenadora. “A questão da camisinha faz parte da vida real. Uma hora os adolescentes vão ter relação sexual, e é melhor que tenham de forma segura.”
Segundo ela, a cartilha foi construída para tratar de temas cotidianos do adolescente. “Não tem nada diferente do que ele vê numa aula de biologia, por exemplo. São apenas informações que vão contribuir para que tenham atitudes responsáveis”, diz.
Com 40 páginas, o documento aborda questões como cuidados de saúde, as transformações do corpo, a primeira menstruação até a prevenção da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis.
Para Lamare, é um erro achar que orientar sobre o uso de camisinha representa um incentivo à atividade sexual.
“As pessoas têm a visão de que, se não falar sobre isso, está protegendo o adolescente. Mas as pesquisas mostram o contrário”, afirma. “Os adolescentes estão vivenciando isso e têm dúvidas. Eles sabem as coisas, veem na internet. Precisamos garantir que tenham acesso à informação correta.”
Ela lembra que, um ano antes da caderneta ser lançada, em 2008, uma versão preliminar foi distribuída em um projeto-piloto em cinco cidades do país: Tabatinga (AM), Curitiba (PR), Belo Horizonte (MG), Petrópolis (RJ) e Rio Branco (AC).
O documento também passou por discussões com grupos de adolescentes de 10 a 16 anos para definição dos temas e da linguagem a ser adotada. Psicólogos e pediatras também colaboraram no projeto.
No ano seguinte, diz, o material passou a ser entregue durante consultas nas unidades de saúde e por meio do programa Saúde na Escola, que prevê atividades conjuntas entre escolas e unidades de saúde.
“Sempre trabalhamos com a participação dos pais. Quando definimos uma entrega maior da caderneta nas escolas, definimos que haveria palestra com os pais para explicar os assuntos que foram colocados. Ela nunca foi entregue de forma aleatória”, afirma.
Dados do Ministério da Saúde apontam que, desde 2009, mais de 32 milhões de cartilhas foram adquiridas pelos ministérios da Saúde e Educação.
Segundo Lamare, nos dez anos em que foi utilizado, houve casos de questionamentos e reclamações, mas “pontuais”.
“Havia alguns questionamentos, que depois eram explicados e os pais entendiam. Isso de forma nenhuma nos impediu de continuar a desenvolver o projeto.”
“Nossa responsabilidade é essa: informar e orientar. Muitas vezes tem uma família que é muito conservadora e não vai entender, e você tem que respeitar. Mas o profissional de saúde pública não pode negar informação.”
Questionado, o Ministério da Saúde informou nesta sexta ainda não ter informações sobre como ocorrerá o recolhimento do material.
Em nota, a pasta informa que “revisará a Cartilha do Adolescente para avaliação da linguagem destinada ao público-alvo, considerando todas as fases de desenvolvimento dessa população”.