Camisinha feminina distribuída no SUS causa polêmica entre usuárias
Jéssica Paula
Da Agência Aids
Também conhecida como preservativo interno, a camisinha feminina passou a ser distribuída gratuitamente através do Sistema Único de Saúde no ano 2000. Apesar de não ter se tornado popular entre as estratégias de prevenção, o governo federal brasileiro é o que mais compra esse tipo de preservativo no mundo. No ano de 2019 foram adquiridas 35 milhões de unidades do produto.
No entanto, a última licitação realizada pelo Ministério da Saúde, no ano de 2018, utilizou como critério único o menor preço do produto, o que acarretou na compra de um preservativo que está sendo repudiado pelas usuárias. Entre as principais mudanças está o material com que o preservativo é fabricado. O preservativo disponível anteriormente é feito de borracha nitrílica, que é antialergênica. Já o produto atual é feito de látex, que pode causar diversas reações alérgicas, além de ser mais espesso e menos confortável.
Assim, o preservativo vaginal deixou de ser visto pelas mulheres como uma alternativa ao peniano, que já é feito de látex.
Mudanças polêmicas
A ativista Vanessa Campos, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, conta que utilizava o preservativo feminino até a mudança acontecer. “O preservativo vaginal/interno de borracha nitrílica foi pensado como um produto específico para vaginas e que considera as vulnerabilidades que a mulher enfrenta nesta sociedade estruturalmente machista. Sabemos que, ao ser colocado dentro da mandala da prevenção combinada, faz um contraponto ao preservativo peniano de látex. Além disso, a borracha nitrílica, por não ser alergênica, permite que o preservativo seja colocado com até oito horas de antecedência e não é necessário aguardar a ereção do pênis, tornando-se, inclusive, um argumento poderoso na negociação de seu uso com homens resistentes ao preservativo e também alérgicos ao látex. E isso dá segurança e autonomia para a mulher sobre sua decisão de prevenção a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), gravidez, hepatites virais e zika vírus.”
Vanessa também explica que há detalhes a serem considerados na hora de pensar na prevenção da mulher, como a menopausa e o prazer sexual. “Por ser resistente e mais fino, o preservativo de borracha nitrílica proporciona maior conforto inclusive para mulheres na menopausa e com ressecamento vaginal. Isso diz muito sobre o quanto nossos corpos e prazeres precisam ser valorizados e visibilizados dentro das estratégias de prevenção. A borda octogonal e a esponja do novo preservativo não priorizam o conforto e nem o prazer da mulher.”
“Essa pretensa economia, comprando produto de baixa qualidade, desconsidera os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, o prazer e especificidades femininas. É prejudicial à saúde e não favorece a prevenção às ISTs, ao HIV/aids e hepatites virais”, diz a ativista, que deixou também de realizar atividades de conscientização para uso deste preservativo.
Material
O látex é muito mais espesso do que os outros produtos utilizados na confecção do preservativo, o que diminui a sensibilidade da mulher. Esse modelo de camisinha também não possui a mesma lubrificação que o anterior. “O látex é um material extremamente alergênico, que pode causar prurido e reações alérgicas. A camisinha vaginal de borracha nitrílica pode ser colocada até oito horas antes da relação sexual. Já a de látex impossibilita isso, porque é inadequada para utilizar internamente”, explica Vanessa Campos.
“O novo preservativo interno ainda não é de conhecimento de todos. Em alguns locais ainda nem chegou, mas as mulheres que já entraram em contato com ele ou utilizaram em suas relações relataram o desconforto em introduzir por a ‘guia’ ser uma esponja. E disseram que ficaram com medo de utilizá-lo por ser de látex. Então preferem que seus parceiros utilizem o externo por não aderir ao canal e, assim, evitar uma possível reação alérgica ao material”, explica a ativista Rafaela Queiroz.
“Eu não recomendo mais a colocação horas antes da relação, ainda mais para mulheres vivendo com HIV que apresentam baixa lubrificação vaginal, aumentando o risco de uma alergia interna que pode ser imperceptível, causar sérios problemas e afetar ainda mais a imunidade”, diz Rafaela.
Para ela, a esponja que vem dentro do preservativo, além de ser antiestética, dificulta a colocação interna do produto. O presidente da Articulação Nacional de Saúde, Renato da Mata, afirma que, após testar a camisinha, notou que a esponja também pode machucar o pênis durante a relação sexual. “O produto não tem muita profundidade e, durante o atrito, pode machucar. Além disso, há mulheres que têm o colo de útero baixo o que dificulta o uso da esponja.”
A borda hexagonal do novo preservativo “causa desconforto e elimina a possibilidade de se obter prazer com o atrito do anel circular. Essa borda torna o preservativo incômodo para ser inserido, além de ser antiestético comparado ao de borracha nitrílica, que vinha com borda circular de silicone que estimula o clitóris”, explica Vanessa Campos.
Pressão da sociedade civil
Segundo o Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, o “preservativo vaginal favorece autonomia, liberdade e poder de escolha das mulheres e contribui para que elas conheçam seu próprio corpo e para que a sociedade desconstrua barreiras culturais de gênero e da sexualidade. Ao mesmo tempo, contribui para o enfrentamento de vulnerabilidades, entre elas aquelas que colocam as mulheres em menor poder de decisão sobre seu corpo e, portanto, sobre a decisão do uso do preservativo nas suas práticas sexuais”.
“Uma grande vantagem do preservativo interno de borracha nitrílica é o seu uso horas antes da relação sexual. O produto favorece a autonomia da mulher e seu uso é primordial em algumas situações ou em determinados momentos da vida. O preservativo de látex é prejudicial, um retrocesso para um produto que ainda temos que promover para garantir a adesão ao uso”, diz a ativista Silvia Aloia.
O Movimento Primavera Feminista iniciou uma mobilização que resultou em uma série de ações, incluindo a criação de um abaixo-assinado que atingiu cerca de mil assinaturas em curto espaço de tempo.
“Rejeitamos o látex veementemente e pedimos que o Ministério da Saúde finalmente ouça a sociedade civil e pare de desperdiçar dinheiro publico em produtos de péssima qualidade, que não cumprem os requisitos mínimos de saúde e conforto de que tanto necessitamos”, diz o manifesto apresentado pelo movimento.
“É um retrocesso. Infelizmente, as decisões passam sem discussão, sem pesquisa de opinião. Sem respeito ao movimento de mulheres que serão as usuárias”, defende a psicóloga social e especialista em educação sexual e reprodutiva Maria Luiza Eluf.
“Além disso, apenas uma pequena porcentagem de preservativos antialérgicos foram comprados”, acrescenta o Movimento das Cidadãs Posithivas. “É preciso destacar que obviamente, mudar o produto ofertado em meio à implementação da estratégia da Prevenção Combinada compromete imensamente a adesão ao produto e desconstrói todo o trabalho que vinha sendo realizado nos últimos anos. Nós rejeitamos a camisinha vaginal de látex veementemente e nos unimos novamente para fazer valer nossos direitos de cidadãs.”
Marta McBritton é presidente do Instituto Barong que realiza testes de HIV/aids e distribui preservativos pela cidade de São Paulo. Segundo ela, o produto não foi bem aceito nas ruas. “As pessoas perguntam pelo preservativo feminino e, quando veem que mudou, até pegam por curiosidade, mas não voltam para buscar mais como acontecia antes.”
Durante o 8º Encontro Nacional da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (RNP+ Brasil), mulheres ergueram cartazes diante do diretor do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, Gerson Pereira, e reivindicaram um preservativo que não seja feito de látex. Em resposta, Gerson afirmou que o Ministério da Saúde já está trabalhando para melhorar a qualidade do preservativo ofertado. “Não teremos mais látex no SUS, vamos comprar camisinhas com textura. Se o preservativo é ruim, ninguém usa.”