Notícia

A primeira cura do HIV

26 nov, 2019 | Fonte: Veja

Timothy Ray Brown, hoje com 53 anos, entrou para a história como a primeira pessoa curada do HIV. Ele descobriu o vírus em 1995, quando morava na Alemanha. Naquele momento, tratava-se de uma sentença de morte. Anos mais tarde, Brown descobriu uma leucemia mieloide aguda. Após o início da quimioterapia, realizou um transplante de medula. A cura de Brown, conhecido como  “O Paciente de Berlim”, foi anunciada em 2009. Ele não está mais sozinho. No início de março deste ano, um paciente de Londres, de 44 anos, foi diagnosticado livre do HIV. Com exclusividade, Brown falou a VEJA antes de desembarcar para o XIV Curso Avançado de HIV e a abertura da mostra o O.X.E.S., da artista Adriana Bertini, ambos em São Paulo.

Como o senhor contraiu o HIV?
Não consigo precisar especificamente. Eu descobri o vírus quando um ex-parceiro de longa data me disse, em junho de 1995, que havia feito o teste – e dera positivo. Fui à mesma clínica em Berlim, onde morávamos, e esperei vários dias para receber resultado. Um médico insistiu para que eu começasse a tomar medicação por achar que eu tinha o vírus. Na época, o AZT era a única droga disponível. Ele me prescreveu uma dosagem baixa. Dias depois, soube do resultado positivo.

Qual foi a sua reação?
Eu tinha acabado de começar a faculdade de ciências políticas na Universidade em Berlim. Estava cheio planos quando escutei a seguinte frase de um amigo: “Você sabe que temos mais dois anos para viver, não é?” Era uma avaliação verdadeira para aquele momento, sem falar no delírio na qualidade de vida. O AZT causava efeitos colaterais severos, como lipodistrofia, diarreias e falta de equilíbrio. Os antirretrovirais entraram no mercado em 1996, mudando todo o tratamento. Os pacientes passaram a receber combinações, os tais coquetéis. Segui os meus estudos. Não tive doenças oportunistas como pneumonia e toxoplasmose.

Uma pessoa soropositiva tem risco 3.000 vezes maior de vir a desenvolver sarcoma de Karposi. A leucemia também é uma doença oportunista?
Não, a leucemia não estava relacionada ao HIV. Apenas cinco pacientes no mundo tinham HIV e leucemia mieloide aguda ao mesmo tempo. Segundo o meu médico, o hematologista Gero Hütter, tratava-se de uma fatalidade. De toda forma, o diagnóstico do câncer me deixou chocado: era a minha segunda sentença de morte. Eu não chorei. Meu parceiro ficou mais abalado, os entes sofrem mais que os próprios pacientes. Comecei minha primeira rodada de quimioterapia no dia seguinte ao diagnóstico.

Quando seu médico decidiu fazer um transplante de medula óssea?
Após a segunda rodada de quimioterapia, ele enviou alguns tubos de sangue para um banco de células-tronco para encontrar doador compatível. Eu tive de interromper a terceira rodada de químio por ter contraído uma infecção grave. Em paralelo, constatou-se um número elevado de possíveis doadores, o que deu ao médico a ideia de procurar alguém imune ao HIV. O plano era: se o meu sistema imunológico fosse destruído e substituído por outro imune ao vírus, eu nunca precisaria me preocupar com o HIV novamente. Apenas 1% dos caucasianos tem essa imunidade chamada delta 32 do CCR5.

Explique melhor.
Era fundamental o doador não ter o gene CCR5, cujo “defeito” é não produzir a proteína delta 32. Ela é uma espécie de fechadura usada pelo vírus para penetrar no sangue. Estima-se que menos de 1% da população mundial seja imune ao vírus. Eles programaram o transplante para 7 de fevereiro de 2007. Eu parei de tomar meus antirretrovirais no dia da cirurgia. Meu namorado achou que a droga afetaria a reprodução das novas células-tronco.

O senhor sofreu rejeição ao transplante?
Depois do meu primeiro transplante e da recuperação inicial, tive caquexia, síndrome que faz perder mais de 10% de tecido adiposo. Logo depois, minha carga viral subiu muito para depois cair repentinamente, de forma a se tornar indetectável. Os médicos pensaram que teria funcionado. Uma colonoscopia não detectou HIV no sangue. No fim de 2007, a leucemia tinha saído de remissão – mas o HIV ainda estava em remissão. Portanto, um segundo transplante de células-tronco do mesmo doador foi agendado para fevereiro de 2008.

Como a cirurgia se deu?
A segunda recuperação ocorreu bem, mas depois perdi muitas plaquetas sanguíneas e me tornei delirante. Perdi boa parte da visão. Um médico desconfiou que eu tinha leucemia no cérebro. Claro que isso era uma desculpa para procurar pelo HIV no órgão, uma vez que o cérebro é um dos reservatórios onde o vírus pode se esconder dos antirretrovirais. Eles não encontraram nem HIV nem leucemia. Infelizmente, os cirurgiões deixaram uma bolha de ar no meu cérebro, que acabou piorando as crises de delírio. A bolha foi removida em uma operação às pressas. Mas tê-la lá por um curto período de tempo ainda teve um efeito negativo sobre o meu equilíbrio até hoje. Após os dois transplantes, precisei tomar medicação antirrejeição por vários meses e desenvolvi diabetes tipo 2.

Quando o senhor se deu conta de que poderia ser o primeiro homem curado do HIV?
Quando o dr. Hütter me apresentou a ideia pela primeira vez, eu não acreditava que pudesse ser escolhido para uma “experiência” sobre a qual ninguém falava na época. Não havia estudo nesse sentido. Digamos que tenha sido um acidente planejado. Embora os exames mostrassem a ausência do vírus, só fui acreditar na cura quando foi publicado um artigo no New England Journal of Medicine, em 2009. Em março último, foi anunciada a cura de uma segunda pessoa, denominada Paciente de Londres. O processo foi igual ao meu: ele tinha leucemia e foi submetido a um transplante de medula de alguém imune ao HIV. Esse homem está sem tomar antirretrovirais há dezenove meses. Ainda falta fazer uma biópsia, mas os indícios são de que, sim, não estou mais sozinho.

Como você vê essa descoberta?
Com alegria. Meu caso não é um incidente , e temos esperança que seja algo replicado para mais e mais pessoas.

As duas curas foram possíveis porque os pacientes tinham leucemia. Como curar os outros 36 milhões de pessoas soropositivas ao redor do mundo?
Não acredito que haverá um único tipo de cura para o HIV. No momento, minha cura não é viável para os outros 36 milhões de pessoas. Não se pode fazer transplante de medula em paciente sem leucemia ou linfoma até por uma questão ética da medicina. No entanto, vários cientistas buscam métodos para fazer a mesma coisa, criar a imunidade, alterando geneticamente o sistema imunológico do próprio paciente. Existem vários métodos sendo testados primeiro em animais antes de  serem experimentados em seres humanos.

Por que a população jovem é a mais vulnerável à contaminação pelo HIV?
Os jovens não experimentaram os horrores dos dias em que indivíduos, do dia para a noite, caíam mortos feito moscas. Muitos pensam que o HIV é uma doença facilmente tratada. Definitivamente, há tratamento, não é mais uma sentença de morte. Mas ser portador do HIV reduz a qualidade de vida, pois há uma preocupação constante com os remédios .

Religião e conservadorismo podem atrapalhar políticas públicas que visam a combater o HIV?
Sim, esses fatores podem aumentar o número de infecções. As sociedades precisam discutir o sexo abertamente, sem demonizá-lo. É necessário que os jovens saibam como transar com responsabilidade. O machismo é um enorme problema. Ouvi e li que homens HIV positivos, que não sabem que têm o vírus mas não foram testados, infectam mulheres porque acham que é seu direito tomar o corpo do outro para seu próprio prazer.

Qual é a importância da Prep, profilaxia tomada diariamente de forma a evitar a contaminação pelo vírus HIV?
O centro de controle de doenças dos Estados Unidos (US Center of Disease Control) mostrou em relatório de 2012 que o antiretropviral chamado Truvada, conhecido como Prep, é 96% eficaz na prevenção do HIV se tomado como uma droga preventiva – uma vez ao dia, todos os dias. Apenas quatro pessoas foram contaminadas tomando a Prep e, ao mesmo tempo, transando sem camisinha. Considerando que milhares de pessoas estão tomando a droga e não foram contaminadas, pode-se dizer que a eficácia da Truvada é de quase 100%. Mas a Prep não previne de outras doenças, como sífilis.

Como você se previne hoje?
Sou imune ao HIV porque não tenho mais a proteína CCR5. Mas, mesmo assim, tenho vida sexual ativa e escolhi tomar a Prep.

Qual é a sua rotina diária?
Eu me levanto por volta das 7 da manhã e tomo quatro doses de café expresso. Vou à academia de bicicleta, com um percurso de 7 quilômetros, onde faço ioga ou musculação. Estou envolvido em vários grupos de voluntários em torno do HIV e também abuso de drogas. Moro em Palm Springs desde 2013 com meu namorado, que é soropositivo. Acabamos de retornar de uma viagem romântica para a Espanha.

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